sexta-feira, 13 de maio de 2011

O amor de Deus

 Amor de Deus

Undique me circumdat amor[1].
São Boaventura

Ou me sente, à noite, à mesa,
Os meus livros folheando;
Ou ande o meu giro dando
De manhã pela devesa –

Ou suba, com sol, ao monte,
Para ver rolar o mar;
Ou desça ao val’, com luar,
Para ouvir gemer a fonte –

Ou a colher violetas
Me quede no meu jardim;
Ou, feito criança, enfim,
Corra atrás das borboletas –

Em toda a parte, Senhor,
Como diz um grande santo,
Me sinto com doce encanto
Cercado do teu amor.

VA


Brados da Natureza

Coelum et terra et omnia quae in eis sunt, ecce undique mihi dicunt ut amem te[2].
S. Agostinho

Que Vos ame, Senhor, em toda a vida –
Diz-me o céu de safiras cravejado –
Que Vos ame, Senhor, e sem medida –
Diz-me a terra também em alto brado.

Em coro com a concha, arremessada
À praia pelo mar sempre inconstante,
Do monte a crista pelo sol doirada
O mesmo brado solta altissonante.

Casado com a fonte cristalina,
Que rega noite e dia o verde prado,
O mesmo brado solta na campina
O bem e mal-me-quer tão consultado.

O mesmo brado solta em seu gorjeio
O meigo rouxinol – lá na devesa –
O mesmo brado solta de seu seio
Por toda a parte toda a natureza.

Amar-Vos, pois, Senhor, cordialmente,
Como pede a natureza e Vós mandais,
Doravante será unicamente
O meu empenho todo e nada mais.

Sem Vós, porém, Senhor, por mais que faça,
Amar-Vos como devo, é-me impossível.
Dai-me, porém, Senhor, a vossa graça
E o impossível se fará possível.

VA


Existência de Deus

Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum eius annuntiat firmamentum[3].
Saltério de David

Ao ver o céu, a terra, o mar, o monte,
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

Com Ele pode o homem, quando queira,
De tudo dar razão,
Desde o ente mais vil, em seu conceito,
Até ao ser mais nobre e mais perfeito
De toda a criação.

Com Ele, o ser do sol, o ser da lua,
Da luz e mais do ar;
Com Ele, os vendavais, as maresias,
Os frios, os calores, noites e dias,
Bem pode perscrutar.

Unido ao corpo seu estreitamente,
Um outro ser também
Com Ele, pode o homem descobrir,
Capaz de bem amar e bem servir
Na terra o Sumo Bem.

Ao contrário, porém, sem Ele, o Mestre
De todo o magistério,
O mundo para mim, p’rà minha mente,
Foi, é e será eternamente
Insondável mistério.

Para se crer, sem Ele, em tantos seres,
Fora mister primeiro
Ao estulto ateísta demonstrar
Que é dever da razão acreditar
Em obras sem obreiro[4].

Mas é impossível; e portanto
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

VA


[1] O amor (de Deus) envolve-me de todos os lados.
[2] O céu, a terra e tudo o que neles há, eis que em meu redor me dizem que Vos ame.
[3] Os Céus cantam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
[4] O autor está apensar no princípio de causalidade: para haver efeito, “obra”, é preciso uma causa proporcionada, um “obreiro”; aqui, Deus. Este poema não terá sido escrito em data muito distante do poema homónimo do Visconde de Azevedo.

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